Maria Brayner : Resistência em BJ em 1964

Maria Brayner do Rêgo Barros: Mulher,Mãe e esposa de Hugo ( perseguido,preso e torturado pela Ditadura de 1964-1985) . 

* 19/04/1924 

+ 31/05/1996

Maria Brayner do Rêgo Barros, era filha de Rozenda e Severino e faria 100 anos em 2024. Foi casada com Hugo do Rêgo Barros, nascido em 13/09/1906, e com ele teve 09 filhos que viveram: Rui, Ruth, Hugo, Luiz Carlos, Rilma, Rina, Maria da Conceição, Maria do Carmo e Petrônio. Hugo, por sua vez, era viúvo e já tinha dois outros filhos, Ivan e Lourdes, formando assim uma grande família extensa, comum nos dias de hoje. 

Hugo era servidor público do estado e trabalhava no departamento de produção animal. Era ligado ao movimento das Ligas Camponesas, que foram organizações de camponeses formadas pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) a partir de 1945. Foi um dos movimentos mais importantes em prol da reforma agrária e da melhoria das condições de vida no campo no Brasil. Elas foram estabelecidas em vários municípios do país, entre os trabalhadores rurais de todo tipo (pequenos agricultores familiares, parceiros, Sem-Terras, assalariados e diaristas) com dois objetivos: o primeiro era aumentar o número de eleitores do PCB, o segundo era identificar os interesses da classe e organizar a luta ao seu favor. Em 1947, elas entram na ilegalidade, de acordo com a postura do Brasil, favorável aos interesses americanos e contra ideias socialistas. Dessa forma, as Ligas passam a sofrer com a invisibilidade e perseguições, sendo assim silenciadas. Elas só voltariam a agir em 1954. 

O segundo período de existência começou no engenho Galiléia, na cidade de Vitória de Santo Antão, em Pernambuco (PE). Foi formada então a Sociedade Agrícola e Pecuária de Plantadores de Pernambuco (SAPPP), que tinha três fins específicos:

1. Auxiliar os camponeses com despesas funerárias — evitando que os falecidos fossem, literalmente, despejados em covas de indigentes ("caixão emprestado")

2. Prestar assistência médica, jurídica e educacional aos camponeses

3. Formar uma cooperativa de crédito capaz de livrar aos poucos o camponês do domínio do latifundiário

Mas a SAPPP foi logo acusada de objetivos políticos socialistas e, proibida de agir na região, foi atacada para ser dissolvida à força. Seus integrantes, porém, resistiram e encontraram apoio jurídico para institucionalizar a associação, atuando legalmente a partir de 1955. Até 1964, com o Golpe Militar, as Ligas sofreram ainda com perseguições e com a instalação do militarismo, vários líderes e membros foram assassinados, presos ou tiveram que fugir, e nessa época as Ligas foram extintas. 

Feita essa singela contextualização histórica, voltemos a Hugo e Maria, vivendo na pacata Belo Jardim dos anos 60, com seus filhos. Uma vida tranquila, exceto pelo temor vivenciado pela família, amigos e vizinhos, decorrentes das diversas buscas realizadas pelo Exército ao “comunista subversivo”. Dizem as boas línguas, que ele costumava orar para São Cipriano e graças ao rezo, se tornava invisível diante dos olhares inquisidores dos militares. Outras histórias sobre seus esconderijos, já ouvimos também, como por exemplo uma que nos contaram sobre uma dormida na caixa d’água de uma casa na zona rural. Das despedidas silenciosas e cordiais, àquelas famílias que o abrigaram. 

Mas essa história é sobre Maria, que numa das fugas de seu companheiro, foi detida pelo Exército com seus filhos a tiracolo, todos menores de idade, e levados ao Tiro de Guerra, localizado em Caruaru – PE, onde passaram um dia inteiro e uma noite à espera de seu Hugo, numa tentativa de que ele aparecesse. Só depois de todo esse tempo e após suspeitarem de que ela estaria grávida, devido ao seu porte físico, todos foram devolvidos a sua casa. As crianças da época, que hoje já são avós, lembram desse dia vividamente. Da sensação de cada aviso que os vizinhos davam sobre a aproximação do exército. Lembram também de como a dinâmica familiar foi profundamente alterada, quando numa possível nova perseguição, Hugo foi transferido para Petrolina em seu trabalho (eram comuns tais transferências, fazendo com que a família migrasse constantemente, para que seus ideais não se expandissem), deixando para trás sua esposa e filhos dessa vez. Lá, em 19/11/1965 ele faleceu por um distúrbio cárdio-circulatório, como consta em sua certidão de óbito, sendo enterrado sem a presença de sua esposa, que lá só conseguiu chegar dois dias depois do óbito. Seu corpo nunca veio para casa. 

E com essa literal última cartada, o Governo Militar mudou a vida de Maria e de seus filhos. A mesma foi lotada na cozinha do antigo Colégio Agrícola, tendo que sair de casa para trabalhar e manter sua prole. Os filhos mais velhos também saíram de casa a trabalho, com o intuito de auxiliar na renda e os demais, ainda crianças, se revezavam no cuidado da casa e nas lições da escola. Uma vida com restrições e muito apoio coletivo, dos amigos, das amigas, das comadres, uma rede de suporte materno que prevalece até os dias de hoje, passadas décadas, presentes na memória de cada contemporâneo belojardinense.

A história de Maria deveria ser a história de uma mulher corriqueira e de uma família comum, não de uma guerreira que precisou ter resiliência e mais força do que gostaria, endurecida pela vida. A história de Maria se repetiu em diversos contextos familiares, que tiveram suas vidas invadidas, modificando a participação social dos mesmos e suas práticas cotidianas. Ao longo das trajetórias de militância, os familiares formaram verdadeira rede de comunicação e apoio na busca de informações. A participação feminina nos movimentos de denúncia e combate ao regime, bem como, pela garantia dos direitos de parentes presos, mortos ou desaparecidos, promoveu modificações no lugar social da mulher, impactando os cenários públicos e privados, o que ainda repercute no tempo presente.

Como na Argentina, no caso das Madres da Plaza de Mayo, onde as mães foram às ruas em busca de justiça por seus filhos silenciados pelo regime ditatorial, no Brasil não foi diferente. Mães, esposas, filhas e tantas mais enfrentaram generais, em passeatas e outros atos. Essas mulheres promoveram a atuação (seja própria ou de suas herdeiras) em lugares públicos ainda desconhecidos, possibilitando o crescimento do espaço e visibilidade da atuação feminina.

Em 18 de novembro de 2011, a então presidenta Dilma Rousseff (PT) promulgava a Lei 12.528, que instituiu a Comissão Nacional da Verdade (CNV) para investigar as violações de direitos praticadas pelo Estado entre 1946 e 1988, com foco nos 21 anos de ditadura militar. A CNV foi um órgão temporário criado pela Lei 12.528 e encerrou suas atividades em 10 de dezembro de 2014, com a entrega de seu relatório final. Nele, a comissão elencou 434 pessoas como mortas ou desaparecidas durante a ditadura militar. O relatório aponta 377 agentes de Estado como responsáveis por graves violações contra os direitos humanos, tais como sequestros, torturas, assassinatos, desaparecimentos forçados, violências sexuais e ocultação de cadáveres.  

Em 1º de Junho de 2015, o Sr. Hugo foi anistiado pela CNV, um documento exigido pelas suas filhas e filhos, que sai em nome da filha de dona Maria, a Sra. Rilma Brayner de Barros Pereira, que atuou juntamente a outra mulher, amiga e advogada Kátia Costa, para garantir tal justiça póstuma. Mulheres em defesa de seus pares, de uma vida digna para todas e todos e da democracia. Tal lição foi apreendida e mantida, perpassando gerações e chegando até aqui, pelas mãos desta que vos fala, chegando aos ouvidos e aos corações dos bisnetos, dos tataranetos de dona Maria e de seu Hugo e dos que virão.

 

Parafraseando outra grande mulher, também intimamente transformada pelo regime ditatorial, Dilma Rousseff: “A verdade não abriga o ressentimento ou o ódio, mas tampouco implica o perdão, a verdade é tão somente o oposto do esquecimento. Ela é o direito de conhecer. É a capacidade que temos de contar o que aconteceu”.  


Texto: Centro Cultural Vaca Profana 








 


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