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sexta-feira, 18 de maio de 2018
A Veneza de Belo Monte
A Veneza de Belo Monte
Atingidos pela hidrelétrica, seres humanos vivem alagados por água podre na cidade de Altamira, num cenário pós-apocalíptico
O
bairro Jardim Independente 1, na cidade de Altamira, sofreu o impacto
da especulação imobiliária causado pela construção de Belo Monte.Lilo Clareto
Marlene acorda na madrugada. Ela teve um pesadelo. Um de seus netos
morria afogado no lago. Quando acorda, ela já sente o cheiro de esgoto.
Sacode Carlos, que dorme ao seu lado. “Carlos, alagou.” O marido está
esgotado pelo dia de trabalho. Ele pinta casas que não alagam. “Você tá
sonhando.” Marlene não está. Ela bota o pé para fora da cama e pisa. O
frio da água molhando o pé lhe provoca um horror silencioso. Naquele
momento o horror é só dela. “Eu não sei nadar”, é o que Marlene pensa
sem parar. “Eu nunca aprendi a nadar.” Ela então repete. “Alagou,
Carlos.” Carlos abandona o sono para lembrar que não há pesadelo pior
que a vida no Jardim Independente 1, na cidade de Altamira, no Pará.
O que acontece a seguir é um balé de sobreviventes. São 11 pessoas na
casa de quatro cômodos. “Tem a Cátia, tem o Ailton, tem o Derlei, tem a
Yasmin, tem o Anderson, tem o Lucas, tem o Gustavo, tem a Lorrane, tem o
Gabriel, tem eu e tem a mulher…”, enumera Carlos. Aí tem meu outro
filho e netos, mas é na casa do lado.” Todos os móveis e
eletrodomésticos já estão sobre estrados. Há cordas na parede. Há uma
porta que baixa por meio de cordas. Sobre essa porta eles colocam suas
posses mais preciosas, como o computador. As outras cordas seguram o
restante. Não há garantia. Já perderam TV, armários, guarda-roupa,
fogão, ventiladores, ferramentas de trabalho, já perderam muito numa
vida de pouco.
Carlos
Alves Moraes, ribeirinho que virou pintor de paredes, mostra a porta
suspensa por cordas que usa para erguer seus pertences mais importantes
quando a casa alaga.Lilo Clareto
A água está rapidamente subindo. Não é apenas água. Mas lixo. Muito
lixo. Água podre. E cobras. Marlene e Carlos tangem as cobras pretas com
um pau. Há crianças. Uma delas é surda e muda. Marlene se comunica com
ela por gestos. Nem precisava. O menino não precisa de palavras para
saber. Ouve o som terrível da água subindo pelos olhos. Na primeira vez,
a avó o botou num colchãozinho no chão e ele saiu flutuando. “Vai
morrer afogado, vai morrer afogado”, gritou a avó. Ela puxou o menino
por um braço e o jogou numa cama. Depois o avô colocou-o nas costas e o
levou para uma casa mais alta.
Quando Carlos Alves Moraes e Marlene Moraes da Silva chegaram ao bairro, em 2005, o chão embaixo da casa era seco. Quando a Usina Hidrelétrica de Belo Monte
foi leiloada, em 2010, e começou a ser construída, atraindo gente de
todos os cantos e também os funcionários das empresas envolvidas, o
preço dos alugueis se multiplicaram. Quem pagava 200 reais numa casa
pequena, foi avisado pelo proprietário que viraria 2000.
Marlene Moraes da Silva tem o sonho recorrente de que ela e os netos morrem afogados durante a cheia.Lilo Clareto
Expulsos pela especulação imobiliária, centenas migraram para as
zonas mais pobres da cidade, como o Jardim Independente 1. Mas ali já
havia um lago. O aumento da população provocado pela construção da usina
e o preço dos alugueis, segundo parecer técnico do Instituto Brasileiro
do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), causou a
corrosão ambiental e social do bairro. A água começou a surgir debaixo
das casas. De repente alguém estava na cozinha e a água começava a
verter. Há casas em que a água irrompe em vários pontos do piso. Há
casas em que se pisa em 30 centímetros de água mesmo em época de seca. O
chão virou líquido.
Em casas como esta a água demora a baixar ou nunca baixa.Lilo Clareto
Neste momento, 968 famílias cadastradas vivem no Independente 1
abaixo das condições mínimas de sobrevivência. A de Carlos é uma das 62
em situação emergencial, mas um emergencial que já dura anos, porque no
Brasil emergencial é uma palavra sem substância. Um passo em falso e
crianças e adultos caem na água contaminada onde boia todo o tipo de
lixo. O cheiro é sempre insuportável, mas o insuportável se torna
suportável porque a vida se impõe. O insuportável sempre pode ser
colocado mais à frente.
O Jardim Independente 1 depois da catástrofe de Belo Monte é um mundo
em que as casas se comunicam por tábuas inseguras, muitas delas
rachadas ou com rombos, colocadas pelos moradores. O Jardim Independente
1 antecipa uma Veneza
do apocalipse pós-climático. Belo Monte é a ação do homem que arrebenta
a possibilidade de vida primeiro dos mais pobres, mas cujo efeito nunca
termina. E vai se propagando em círculos cada vez maiores.
Quando o bairro alaga, as crianças precisam faltar às aulas ou são carregadas nas costas pelos pais através da água.Lilo Clareto
Mas não há metáforas na vida de Marlene e de Carlos. A água segue
subindo e eles se abrigam num quarto que fizeram nos fundos da casa,
construído 1 metro e 20 centímetros acima do chão. Ali já estão a
geladeira e o fogão. E os alimentos que conseguiram armazenar. As 11
pessoas se amontoam junto com os móveis em nove metros quadrados. As
crianças já não podem mais ir para a escola, porque ir para a escola
significa atravessar a água podre. Só cabe um colchão e não há como
dormir espichado, é preciso se encolher. E assim passam os dias e as
noites. Carlos bota apenas uma tábua para ligar o quarto e o banheiro. E
este é todo o movimento. O único que nada para a terra firme é ele,
porque precisa trabalhar.
Eles já passaram 17 dias assim.
Um defensor público federal, que entrou no Jardim Independente 1
durante um período de cheia, voltou para o hotel e chorou de horror e de
impotência. É um homem acostumado a frequentar os piores presídios do
país, assim como os lugares mais insalubres de diferentes regiões, mas
nunca tinha visto nada tão além dos adjetivos.
As centenas de crianças do Jardim Independente I correm risco permanente.Lilo Clareto
Quando o horror se reinventa, os moradores estão sozinhos. Foi assim
em 2014. A mãe de Marlene passava uma temporada com a família e adoeceu
de dengue hemorrágica.
Ela tremia sem parar e a água estava muito alta. Carlos pegou um isopor
de 70 litros e colocou a mulher dentro. Nadou através da água suja com a
mulher dentro do isopor. Em terra firme, a levou ao hospital. Ela
morreu alguns dias depois. E assim Marlene perdeu a mãe.
Carlos explica que tem “três qualidades de gente no corpo”. É
indígena, a mãe pertence ao povo Xipaya. É ribeirinho, morou a maior
parte da vida na Vila da Ressaca, na Volta Grande do Xingu, uma das
regiões mais atingidas por Belo Monte e hoje ameaçada pela mineradora
canadense Belo Sun. “A gente não tinha bicicleta nem carro nem moto. Só
canoa. Por isso ocupamos esse nome de ribeirinho.” E só saiu da beira do
rio para morar na cidade quando empresas de mineração começaram a fazer
“pesquisas”: “Os homens da empresa dizem: ‘Só vou tirar um pedacinho do
seu barranco para testar….’ E quando voltavam já tinham aquele poder
todo de tirar a gente dali”. A terceira qualidade é a de pescador. Mas o
Xingu arrasado por Belo Monte já tem pouco peixe.
Os
moradores do Jardim Independente 1 só foram reconhecidos como atingidos
por Belo Monte em 13 de março de 2018, mas há anos vivem em situação de
risco por conta dos impactos da hidrelétrica.Lilo Clareto
A inventividade de Carlos para criar mecanismos para proteger sua
família da água só é menos impressionante que sua teimosia em viver
honestamente num país que o humilha dia após dia. Em cada empreitada de
pintura ele ganha 200 reais para trabalhar de segunda a sábado. Trinta e
três reais por 10 horas diárias de trabalho. Ele para 30 minutos, 10
para comer a marmita de arroz, farinha e “uma carnezinha frita” e 20
para descansar. Tem 61 anos. Trabalha sozinho, “porque gosta de fazer
direito”. Atravessa com a água podre batendo no peito e a atravessa de
volta com a água podre batendo no peito. Ano após ano.
Num canto, entre a porta de entrada e a porta do quarto onde o menino
que não ouve nem fala vê um programa evangélico na TV, Marlene, 58
anos, entrelaça uma lã de cor bem viva. Laranja. Enquanto a matam um
pouco por dia, ela está fazendo tapetes para a casa nova que espera ter
quando houver justiça. Tapetes para quando tiver chão. Com os pés sobre
tábuas corroídas, cercada de água podre por todos os lados, a vida
apenas equilibrada em solo encharcado, Marlene tece um novo conceito
para a palavra esperança. Este só ela alcança.
Marlene faz tapetes para a casa que um dia espera ter em terra firme.Lilo Clareto
————
Somente em 13 de março deste ano, os habitantes do bairro Jardim
Independente 1 foram reconhecidos como atingidos por Belo Monte. Foi uma
longa luta do Movimento dos Atingidos por Barragens
(MAB), que assumiu o desafio e liderou os moradores, assim como da
Defensoria Pública da União (DPU) e do Ministério Público Federal (MPF).
O IBAMA finalmente reconheceu a relação direta entre o impacto de Belo
Monte e as condições insalubres de vida dos moradores. Determinou então a
responsabilidade da Norte Energia, empresa concessionária da
hidrelétrica, no reassentamento dos atingidos, e a responsabilidade da
prefeitura de Altamira na descontaminação, desinfestação e reparação da
rede de drenagem pluvial.
Neste domingo, 13 de maio, terminou o prazo de 60 dias dado
publicamente pela presidente do IBAMA, Suely Araújo, durante reunião em
Altamira, para que a Norte Energia apresentasse um plano de trabalho
para a realocação dos moradores das casas com arquitetura de palafita e
das casas em que não há condições de realizar saneamento básico. O
ofício enviado à Norte Energia com a determinação tem data de 22 de
março. Procurada pela Amazônia Real, até o fechamento desta reportagem a Norte Energia não havia dado resposta.
É neste cenário que milhares de pessoas atingidas por Belo Monte resistem e lutam por justiça dia após dia.Lilo Clareto
Carlos e Marlene seguem acordando no mesmo não lugar. Fonte:https://brasil.elpais.com/brasil/2018/05/14/politica/1526322899_121198.html
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